Guarapuava comemora nesta terça-feira (9) 206 anos conforme a data oficial adotada pelo município: 9 de dezembro de 1819. Mas, segundo a historiadora Zilma Haick Dalla Vecchia, integrante do Instituto Histórico e Geográfico de Guarapuava (IHG), a história da cidade é mais antiga, e complexa, do que o número que aparece no calendário.
Em entrevista ao Atento News, Zilma, que estuda a história de Guarapuava há quase duas décadas e vive na cidade há mais de 80 anos, lembra as transformações do município e a importância desse passado.
Assista a entrevista na íntegra:
“Pude perceber a mudança que essa cidade teve durante esse tempo de vida que eu tenho aqui. Antes era uma cidade barrenta em dia de chuva, empoeirada em dia de sol. Hoje está muito bonita. Eu sempre digo como na música do Silvino Turco: ‘Ela é cidade linda e eu falo dela onde eu estiver’”, conta.
Campos cobiçados e disputa entre Portugal e Espanha
Zilma explica que os chamados Campos de Guarapuava eram uma área estratégica para a Coroa portuguesa desde o século 18. O objetivo era avançar o domínio de Portugal até o Rio da Prata e explorar possíveis metais e pedras preciosas, em disputa direta com os espanhóis.
Por volta de 1772, o bandeirante Cândido Xavier chegou à região entre o que hoje é Pinhão e Reserva do Iguaçu e comunicou ao governo a existência dos campos. Na época, o Paraná ainda fazia parte da Capitania de São Paulo, comandada por um governador parente de Afonso Botelho, militar ligado a essas expedições.
Segundo a historiadora, uma primeira tentativa de ocupação terminou em conflito com os povos indígenas. Após um massacre de soldados portugueses, a região ficou praticamente abandonada por cerca de 40 anos, até que o cenário político mudou com a chegada da Família Real ao Brasil, em 1808.
Expedição real e início do povoamento em 1810
De acordo com Zilma, o marco do povoamento efetivo de Guarapuava é a expedição comandada por Diogo Pinto de Azevedo Portugal, enviada por Dom João logo depois da transferência da Corte para o Rio de Janeiro.
“Eu considero que é a partir da chegada dessa expedição, em 17 de junho de 1810, que Guarapuava passa a ser realmente povoada”, afirma.
A expedição não veio apenas com militares: trouxe também mulheres e crianças. A esposa de Diogo Pinto, grávida, deu à luz durante o trajeto, e outros filhos do casal foram registrados mais tarde na região. Para a historiadora, isso mostra que não se tratava só de uma tropa de passagem, mas de um projeto de ocupação permanente.
Nesse contexto atuava também o Padre Francisco das Chagas Lima, conhecido como Padre Chagas. Em razão do chamado regime do padroado, o rei interferia diretamente em assuntos da Igreja, determinando onde seriam criadas paróquias e freguesias. Padre Chagas veio com a missão de organizar a presença religiosa e defender os interesses dos indígenas, enquanto Diogo Pinto representava, sobretudo, a expansão do domínio português.
Da disputa de lugares ao auto de fundação de 1819
Os dois, relata Zilma, tinham visões diferentes sobre onde a população deveria se fixar. Diogo Pinto defendia uma área em direção a Laranjeiras do Sul, enquanto Padre Chagas preferia afastar a povoação do acampamento militar e das tensões com os indígenas.
A escolha do local que hoje corresponde ao Centro de Guarapuava foi registrada em documento histórico. Em 9 de dezembro de 1819, Padre Chagas e o comandante Antônio da Rocha Loures percorreram a região a cavalo e selecionaram uma área alta, com boa água e terreno adequado. De volta a Atalaia, escreveram o Auto de Fundação da Freguesia de Nossa Senhora de Belém de Guarapuava.
Esse Auto, explica a historiadora, é um documento longo, dividido em capítulos, em que Padre Chagas descreve como deveria ser organizada a freguesia: largura das ruas, distância entre as casas para prevenir incêndios, funcionamento da administração e até recomendações ambientais.
“Ele diz para não cortar as árvores e para comer os frutos das pitangueiras, das jabuticabeiras, do pinheiro. É um documento impressionante”, comenta Zilma.
Para ela, esse planejamento torna Guarapuava “uma das poucas cidades de formação histórica portuguesa projetadas em quadras”, resultado direto da atuação de Padre Chagas.
Vila em 1852, cidade em 1871
A historiadora lembra que, mesmo depois do Auto de 1819, a maior parte da população não indígena continuou por algum tempo em Atalaia, antiga base da expedição. Só em 1821 esse grupo se transferiu de forma mais constante para a nova povoação. Anos depois, em 1825, Atalaia seria incendiada.
Guarapuava foi elevada à condição de vila em 1852 e a cidade em 1871. Para Zilma, isso mostra que a trajetória do município é feita de fases e decisões políticas, e não de uma única data.
Como 9 de dezembro virou “aniversário oficial”
Se, na visão da historiadora, a história de Guarapuava começa em 1810, por que o município comemora o aniversário em 9 de dezembro de 1819?
Zilma resgata um episódio de 1936. Naquele ano, o escritor e político guarapuavano Antônio Lustosa de Oliveira encontrou o registro do Auto de Fundação de 1819, copiado em cartório décadas antes. Incomodado porque a cidade não tinha um dia oficial para celebrar o aniversário, ele procurou o então prefeito e defendeu que Guarapuava precisava de uma data simbólica.
Sem apoio imediato do poder público, Lustosa organizou, por conta própria, as comemorações: lançou um livro para arrecadar recursos, reuniu apoiadores e promoveu uma festa em 9 de dezembro, com banda e fogos de artifício. Tomando o Auto de Fundação da freguesia como referência, passou a tratar aquele dia como o “aniversário de Guarapuava”.
A tradição se consolidou e, mais tarde, foi confirmada em leis municipais. Desde então, a cidade celebra a data com eventos oficiais.
Para Zilma, contudo, é importante lembrar que esse recorte “acaba deixando de lado nove anos de formação histórica e de povoamento efetivo”, iniciados com a expedição de 1810. Ainda assim, ela reconhece o valor simbólico do 9 de dezembro, especialmente por marcar a organização da freguesia e do espaço urbano.
“Eu adoro essa cidade”
Ao olhar para o presente, a historiadora destaca que Guarapuava ocupa um lugar privilegiado do ponto de vista geográfico.
“Segundo os documentos, aqui é alto, quase não temos problemas graves com enchentes. Apesar do vento e, às vezes, da neve, é um lugar privilegiado”, diz.
Mais do que datas e documentos, Zilma fala também do vínculo afetivo com o município onde nasceu, cresceu e construiu sua trajetória.
“Eu nasci aqui. Então é a minha cidade. Eu adoro isso aqui. Só vejo coisa boa em Guarapuava”, resume.
Por William Batista.